segunda-feira, 22 de julho de 2013

Personalidades: José Sebastião da Cunha - Seu Juquinha

(Recomenda-se ler ouvindo Beijinho Doce)




O segredo do tempo é consumi-lo sem percebê-lo.
É fingir-se infinito para não o vermos passar
É fazer-se contar em anos em vez de momentos
(...)
Se esconde nas sombras que se movem
Nos objetos que não mais servem
Nas pessoas que nunca mais vimos
Na podridão das frutas que não foram colhidas
Nas lembranças já esquecidas
Revela-se nas fotos que se desbotam
Nas cartas que amarelam
Nas crianças que crescem
Nas rugas que aparecem
(Paulo Esdras)

    Com ajuda da parteira, Dona Merenciana, meu pai nasceu em Major Gercino no dia 16 agosto de 1936, de parto normal. Primogênito de Benta Maria Loz e Sebastião José da Cunha, foi batizado José Sebastião da Cunha. Desde muito criança, o pequeno José Sebastião já mostrava pouca ou nenhuma inclinação à lida da roça. Por certo que havia puxado ao pai Sebastião José, segundo dizem os tios. Vale dizer que o sustento da família era garantido justamente pelo plantio de milho e fumo e pelos animais que meu avô criava e caçava.
O desapego àquela vida tipicamente agrária marcaria o destino do meu pai.
O vírus da modernidade que o mordeu e marcou indelevelmente seu segundo nascimento, o psicológico, manifestou-se quando da queda de um avião em Major Gercino, então distrito de Tijucas-SC. O ano era 1945 e, obviamente, eu ainda não havia nascido. Não fui testemunha ocular da história. E aqui, antes de  continuar, cabe fazer um mea-culpa: conto a história porque me confiaram a tarefa e porque a mesma me foi contada pelo próprio pai e pelos tios. Como os  fatos, todos, me chegaram fragmentados, conjugados com minha pouca memória, podem resultar em parágrafos com fumos de fantasia e em alguns nomes trocados.  Portanto, fico desde já eximido de qualquer acusação ou pensamentos maldosos dos leitores mais apegados ao real. Estes devem cobrar verdade única dos contemporâneos do meu pai.
Estavam no pátio da escola, entretidos em brincadeira de roda, a professora Edite e seus alunos quando ouviram e viram o estrondo e a fumaça quase bem preta  que se levantou lá pros lados do Tereré. A escola era como aqui e o Tereré como lá no Barracão, só que bem depois da igreja. Com medo daquela coisa que caíra  do céu, alguns alunos e a merendeira deixaram a cantoria de lado e seguiram para o morro do Rio do Alho, em sentido oposto; os mais destemidos e a Edite foram ao Tereré movidos pela curiosidade de ver no chão, expostos, os fragmentos de um mundo até então desconhecido - numa época em que não existia luz elétrica por aquelas bandas e que as pessoas eram assombradas pelas bruxas e demônios da cultura açoriana, aquele acontecimento era algo espetacular. O mundo girava como atualmente, sim, só que em branco e preto, como atestam os filmes e as fotografias antigas.
Quantos já viveram a experiência de receber Deus por uma fração de segundo? Muitos, acredito. O certo é que a quem já aconteceu é impossível deixar de seguir Sua trilha, ainda que inconscientemente. Judeus morriam na Alemanha no instante exato em que o aluno José sentiu Deus imenso ao olhar os destroços espalhados no chão. Seria possível consertar aquilo tudo? Ajeitar o desajeitado? Ajustar o desajustado? Não havia resposta, mas estava plantada a semente do futuro profissional.
Aos sábados, os colonos vindos do Tijipió e do Garcia chegavam em Major Gercino pra fazer as compras na venda do Augustinho Laurindo, meu futuro avô materno. O som das carroças e dos carros de boi compunham a música que embalava aquelas manhãs ensolaradas. Enquanto os pais compravam o querosene que abasteceria as pombocas, mais o sal, o trigo, o açúcar e o arroz, os miúdos de rosto vermelho e nariz escorrendo iam assistir ao meu pai, agora chamado Keca, saltar da ponte no Rio Tijucas. Ele foi exímio saltador. A ponte era coberta, igual a nossa Engº Emílio Kuntze, só que de vão e altura bem maiores. - "Era lindo à  beça de se ver", ainda dizem os que tiveram oportunidade de assistir.
Ana era a terceira filha de Bernardina, a Dica, e Augustinho Laurindo. Fazia o pão e a polenta, o feijão e o pirão preferidos dos pais. Daí ser ela a predileta da cozinha. Estudava e não fugia ao trabalho doméstico ou da roça, mas o que gostava mesmo era de remar pelo Rio Tijucas. Achava o Keca da Benta um  tanto quanto exibido, alguém que "vivia se aparecendo pros outros”, contava sorrindo.
Inaugurada em 1960, a construção da Usina Hidrelétrica Garcia movimentou muita mão-de-obra em Angelina e região. As noites brancas, clareadas pela  eletricidade, deixavam entrever o futuro e eram as mais sólidas representações de que o mundo moderno estava chegando. O pai arranjou o primeiro emprego. Me disse que trabalhou pesado por dentro de canos aonde "cabiam dois homens em pé, um em cima do outro, e ainda sobrava espaço pra uma cabeça. Das grandes, meu filho!". Sua mão-de-obra não era especializada, daí o salário exíguo a que tinha direito. Ainda assim, fato importante, aprendeu a profissão de soldador e conseguiu comprar uma bicicleta usada.
A bicicleta era vermelha. Tinha varão, sineta, farol, fitas que escorriam do guidão e uma capa de assento do Fluminense-FC rodeada por pequenas tranças alternadas, verdes e grenás.   
Naquele final de semana, já torcedor eterno do time carioca, o pai descambou pro Major Gercino, pedalando. No meio do caminho, altos do Morro do Garcia,  parou na figueira que faz vezes de gruta e fez promessa de casamento com a Ana. Rezou o Santo Anjo e desabalou morro abaixo na velocidade do amor e da felicidade que o aguardavam.
Os sábios que desculpem minha santa ignorância, mas quem é capaz de explicar o destino? Naquele sábado, na hora da Ave Maria, a Ana da Dica foi passear no Tereré, ver os restos já enferrujados do avião caído. Por seu turno, o pai foi visitar a tia Olga, também no Tereré. Ele de bicicleta, ela de canoa. Não sabiam um do outro, sério. Encontraram-se sobre a grama, sob o sol. Protegeram-se no sombrio refrescante das árvores. Ah, a beleza, a juventude, o desejo e o beijo no rosto - no rosto, sim, porque minha mãe não beijava na boca de jeito nenhum. - "Nananinanão", argumentava muito seriamente. Aos abraços, selaram a promessa  de viverem juntos pra sempre. Enquanto isso, ali perto, o rádio da tia Olga tocava o Beijinho Doce.
E foi assim que o pai jurou amores à figueira dos milagres e, por analogia, começou a também torcer por um certo time pequeno. 
Minha mãe era solteira quando engravidou do primeiro filho. Como a situação econômica do casal era de amargar, esconderam a notícia das respectivas famílias o quanto puderam, esperando por uma melhora financeira que nunca veio. Jurando voltar ao Major pra buscá-la, sem escolha o pai deixou a Ana com um problema familiar e um filho no ventre. O problema do pai, porém, não era menor: urgia conseguir os meios pra sustentar a família recém iniciada. Sem destino definido, partiu de carona num FNM que seguia levando mercadorias do litoral para a serra. Arranjou emprego em Urubici numa pequena oficina de automóveis, na Esquina, aonde se estabeleceu. O ano era 1958.
A Dica foi o tipo de avó modelo para todas as outras avós que já existiram, existem e ainda vão existir neste mundo. Sem educação escolar, inventou símbolos alfa-numéricos com os quais gerenciava as demandas da Venda do Augustinho. Quando andava parecia flutuar, como convém a todas as avós-bentas, pra dizer o mínimo. Era dona de um caráter que jamais abandonaria ao destino uma filha tão amada quanto a Ana e o filho recém-nascido.
“O Rio Tijucas era fundo, / agora ele é baixo./ Todo mundo tem os seus amores/ só eu procuro e não acho.”[1]
O pai, já apelidado Juquinha, voltou ao Major Gercino em 1960 cumprindo o que prometera. Quando encontrou-se pela primeira vez com o filho, o Cunha contava dois anos e estava naturalmente incorporado aos Laurindo - dizem que graças às intervenções da matriarca que soube curar com ternura o coração ferido da família.
Meus pais casaram-se às pressas, quase em segredo. Depois, contra a vontade dos Laurindo que a esta altura não mais queriam separar-se do pequeno Cunha, partiu a família para Urubici aonde uma casa bastante pobre os aguardava - a mãe levava uma mala, o pai um saco de linhagem com alguma comida. O Cunha, de beiço comprido e cara de choro, segurava com força a barra da saia da mãe – mais pareciam retirantes, personagens de Graciliano Ramos materializadas na poeira da estrada - “Por que existem uns felizes / E outros que sofrem tanto? / Nascemos do mesmo jeito / Vivemos no mesmo canto. / Quem foi temperar o choro / E acabou salgando o pranto?”[2]
 Nunca souberam que a origem do nome Urubici é Kaigang e que significa "mãe das águas frias". Para os meus pais significava aprendizado, bons vizinhos, pouco dinheiro, asma e águas muito, mas muito frias mesmo. Aliás, penso muito seriamente que foi em Urubici que a asma começou a desinventar o meu pai.
Valdete, minha segunda irmã, nasceu em Urubici. A cidade era hospitaleira e o casal, agora com dois filhos, cultivou amizades que extrapolaram o tempo em que lá viveram. Porém, se o ambiente social os acolhia, o clima frio e a umidade, tão nocivos às doenças pulmonares do pai, os repelia. O patrão, dono da oficina, pediu: - “Fica!”, – “Me queira bem que não custa nada”, teria respondido o Juquinha quando resolveu partir.
“No pain, no gain”, pensou o pai, só que em português - era preciso arriscar, precisava ganhar mais dinheiro para o conforto da família e principalmente respirar ares mais amenos. Em 1962 desembarcaram em Alfredo Wagner com todos os pertences: uma mesa, algumas cadeiras, uma caixa com os utensílios de cozinha, uma bateria de pendurar panelas, o fogão à lenha e a mala de roupas. Ah, também tinha uma máquina fotográfica que fez história – meu pai era moderno,  como já disse, e gostava de registrar os momentos em família. A mudança foi feita de caminhão e segundo o Santo Luca, dono do caminhão, “não deu lá muito trabalho, pois se o Juca não tinha quase nada!!”.
Alugou uma pequena garagem nos fundos da Oficina Mecânica São Cristóvão, de propriedade do Lauro Cechetto, e ali estabeleceu sua própria oficina de lataria e pintura de automóveis. Começava assim a história do Juquinha e da nossa família em Alfredo Wagner.
Aqui nasceram os demais filhos. E, coincidência ou não, no mesmo dia em que nasci as mulheres saíam às ruas nos Estados Unidos lutando por mais dignidade e direitos sociais. Simbolicamente, queimaram os sutiãs. Não que eu queira me gabar.
Juquinha e Ana já partiram para o lado de lá, deixaram sete filhos e um só legado: a oportunidade de acesso ao conhecimento - motivo de orgulho para ambos até o final. Atualmente, quando nos encontramos em reuniões de pão e vinho (mais vinho do que pão), filhos, genros, noras, netos e bisnetos, no mais das vezes reverenciamos o José, reverenciamos a Ana. Mantemos viva a história e consolamos nossos corações na lembrança daqueles tempos de lares de mãe.
Meu pai não fez fortuna, e no entanto tornou-se muito popular desde Bom Retiro até Ituporanga por conta da sua oficina de chapeação. Única nestas redondezas por longos anos. Quando a oficina ficou pequena e os filhos ficaram grandes, ele arriscou-se em novos negócios. A família morava no Barracão, em frente ao Seu Nelinho, na casa que mais tarde pertenceria à Dona Petronilha. O sonho era mudar-se para o Sombrio, e quando a oportunidade surgiu ele a agarrou com unhas, dentes e dívidas. Comprou um bar e um terreno na Rua do Comércio. O primeiro ladeava o perau do morro do ginásio, atualmente Bar do Anjinho, e os negócios eram tocados à força de pastel, café e cachaça feitos e servidos pela mãe e pelos irmãos mais velhos. O posto de gasolina Atlantic, logo à frente, era gerenciado pelo Seu Ascendino Cunha. Já o terreno, do outro lado da rua, se estendia até o rio e abrigava uma casa grande, com ares de sobrado, e uma oficina novinha em folha.
Aquela Empire talvez não tenha sido a primeira de Alfredo Wagner, mas com certeza foi a primeira televisão pública da região. No dia 21 de junho de 1970 o estádio Azteca recebeu cerca de 100.000 pessoas pra ver a grande final da copa do mundo do México. Simultâneamente, em Alfredo Wagner, mais de 100 pessoas se acotevalavam no Bar do Juquinha pra ver as jogadas geniais de Pelé, Tostão e Gérson.
Meu pai foi um homem à frente do seu tempo até nas doenças sob as quais convalesceu, exemplo disso foi a famosa crise nervosa de 1972. Fosse hoje e o pai teria sido diagnosticado com síndrome do pânico, na época passou por alguém excessivamente nervoso que precisava “repousar em casa especial”. O que queria dizer, em outras palavras, que ele estava beirando a loucura e precisava ser afastado da sociedade por uns tempos. Exageros da medicina da época, claro.
Em meados de 1972 nossa vida seguia dividida entre o sucesso do bar e os nervos escangalhados do pai. O dinheiro entrava graúdo e a dívida estava controlada, quase quitada. Minha mãe continuava fritando pastéis enquanto o pai, entre uma crise e outra, desamassava, lixava e pintava os automóveis e caminhões da época. O Seu Ascendino, por sua vez, tinha cheiro de óleo diesel e gasolina. Foi por esta época que o Bento Bandeira jurou que ia explodir o posto de gasolina, vingando um prato de comida que ganhara sem um “miche pedaço de carne. Será o Benedito?” - vocês que menosprezam o medo que tínhamos daquele andarilho barbudo vindo sei-lá-daonde, perguntem às pessoas com mais de 60 anos, àqueles que se disporem, quem era o tal Bento Bandeira. Pensem num homem irascível, tão brabo que até hoje ninguém gosta de tocar no assunto. Isto é muito sério.
Meu pai associou o mal dos nervos ao bar e às incomodações dele advindas. A despeito dos sucessivos aconselhamentos contrários, o pai vendeu o bar como quem compra uma aspirina pra curar a gripe. Em 1973, para o Sr. Ivo Schmitz. Foi aí que nos mudamos de vez pra casa do outro lado da rua, aquela com ares de sobrado.
Paradoxo: “a única verdade absoluta é que não existe verdade absoluta”. É preciso relativizar todos os valores, sociais e históricos, materiais e científicos. Por isso respeito a casa de todas as famílias, só que, com profunda humildade, ouso dizer que a nossa foi a melhor de todos os tempos e lugares. Era como casa de madrinha, grande, de dois andares. Tinha fogão à lenha, escadas, varandas e vários cantos secretos a serem explorados. O quintal era lindo pra dedéu, com pereiras e uma parreira de uvas grande assim! Pé de laranja não tinha, mas estas a gente pegava no pé alheio, da vizinha.
Falando nisso, acabei de lembrar que jamais paguei, nem agradeci, os quase 10 sacos de laranja açúcar e umbigo que peguei emprestado. Assim, aproveito este espaço de memórias pra registrar meu mais profundo agradecimento: Obrigado, Dona Cândida May, pelo carinho e pelas laranjas.
A relação de meu pai com os cachorros de Alfredo Wagner nunca foi das melhores, definitivamente. Os cachorros mais ilustres da cidade, conhecidos pela ferocidade, sem exceção morderam o pai. Assim foi com o Saldanha, o Conhaque, o Rintim e o Shark. E até o Chipel, meu saudoso vira-lata que morava um dia com a gente e dez no mundo, jamais deixou de rosnar sempre que o via.
Meu pai passava horas, dias e noites, inverno e verão, sob e sobre carros, trabalhando sem parar. Seu lazer resumia-se a pescarias com os amigos – ele adorava pescar -  e um que outro baile no interior embalado por algumas cervejas. É inegável que meu pai se apaixonou por Alfredo Wagner. O trabalho era árduo, sim, mas a comunidade dava em troca sustento, amizade e o estudo dos filhos que ele tanto soube valorizar. Contudo, seu ímpeto de modernidade às vezes contrastava com uma certa melancolia que o invadia sempre que seu querido Major Gercino vinha à mente. Daí ele rezava o Santo Anjo.
No final da década de 70, início dos 80, o pai construiu estufa e reativou as roças de fumo no terreno que pertencera ao Vô Bastião, seu pai, em Major Gercino. Porém, por mais esforço que meus tios agricultores fizessem, a tal roça não aguentou mais que três safras seguidas. Nesta época as viagens entre uma cidade e outra eram constantes, sempre que a saudade apertava ou os negócios exigiam. Pra terem uma idéia, em 45 anos de Alfredo Wagner meu pai visitou a Vó Benta 225 vezes, visitas contadinhas uma a uma nos dedos da mãe.
Os nervos foram controlados, a asma não. Meu pai tentou todos os meios e medicamentos, desde os ortodoxos oferecidos pela alopatia e pela homeopatia até bizarrices como gordura de tatu derretida, gemada de ovo de lagarto e garrafadas indígenas vindas do Mato Grosso e do Amazonas. A cura foi sempre paliativa, nunca integral e definitiva.
Entendo que Alfredo Wagner está situada nos limites da identidade. Neste sentido, as demandas trabalhistas são resolvidas em Rio do Sul, as educacionais em Florianópolis e as jurídicas em Bom Retiro. Convivemos com culturas tão díspares quanto a alemã, a italiana, a gauchesca e a açoriana. Alfredo Wagner não está inteiramente localizada na serra, nem no litoral ou no alto vale. A diversidade religiosa é flagrante. Nosso  ambiente natural não é purista, ainda bem, e nossa identidade caracteriza-se por um certo instinto de não-identidade, pela mistura. Pra isso, como muitos outros cidadãos da época, o pai colaborou um tantinho acrescentando ao caldeirão da gênese alfredense o que ele tinha de melhor: o olhar voltado pro futuro, o instinto de modernidade, a fala litorânea, uma faísca de cultura açoriana e sua bondade imensa.

       Naquele primeiro final de semana de outubro de 2007, peguei o pai na Rita Maria, vindo de Alfredo Wagner, e fomos visitar a Vó Benta e a Tia Olga. Seria a última vez. Durante a viagem, o pai me foi contando histórias daquelas casas antigas à beira da estrada, dos engenhos de farinha do Arataca, das oficinas de tamanco. Ríamos. Ele tossia muito por causa da asma que se anunciava forte. Senti orgulho de estar ao seu lado naquele momento em que a emoção mostrava-se à flor da pele, e não outro filho. Ao chegar no Major Gercino, rezamos o Santo Anjo no túmulo do Vô Sebastião - o Keca renascia naquela terra e ele já não era meu pai, era um menino amigo meu. A visita foi como de costume, o pai abraçou a Vó Benta e ela derramou uma lágrima secular, a lágrima de saudade tantas vezes repetida sempre que ele chegava - "passa pra dentro, vem comê!!". Passamos.... e comemos. A despedida foi marcada por uma fotografia significativa. Nela ficou registrado o adeus de meu pai à sua mãe, o instante de um aperto de mão e de um sorriso cúmplice. Assim como quem nunca mais vai voltar, assim como quem diz "até breve, minha mãe".


Uma semana depois, asmático, o pai entrou na ambulância parada em frente à nossa casa. Chamou minha irmã e chorou miúdo consciente de que a internação no Hospital Regional Alto Vale, em Rio do Sul, seria definitiva: - "Sempre soube que ia morrer antes da Ana. Cuida da tua mãe!". Faleceu em 27 de outubro de 2007.
Quem garante que na viagem não pensou no grandioso hotel que não teve tempo de construir na barranca do rio? No cultivo de flores que nunca aconteceu? Na viagem de avião que jamais realizou? A vida passa num segundo. O que se planta permanece por gerações.
valdir cunha, junho 2013.

ORAÇÃO[3]


Ele morreu, Senhor,
Seja José a criança, o mais pequeno.
Pega-o Tu ao colo
E leva-o para dentro da tua casa.
Despe o ser cansado e humano
E deita-o na tua cama.
E conta histórias, caso ele acorde,
Para o menino tornar a adormecer.
E dá-lhe sonhos teus para ele brincar
Até que nasça qualquer dia
Que Tu sabes qual é.







[1] Quadrinha da tradição oral, repassada pela Vó Dica à filha Ana
[2] Poema filosófico retirado da cultura popular
[3] Oração livremente adaptada a partir do poema O guardador de Rebanhos - VIII de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.

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